O homem do espelho
Sempre fui honesto o suficiente para não me achar desonesto. Tinha alguns desvios, mas pareciam-me estar dentro da média nacional de deslizes – ou mesmo abaixo dela.
Quando ingressei em A.A., aos 36 anos, a desonestidade não entrou na pequena lista de defeitos do meu inventário pessoal. Nas reuniões, ficava ansioso para falar e exibir minhas “inteligentes” interpretações dos Passos e das Tradições. Achava minhas sacações importantíssimas para a recuperação dos outros.
Acreditando ser um novo homem em A.A., eu achava que também era uma nova pessoa em todos os lugares. Mas, em casa, eu continuava tendo problemas. Com os colegas de trabalho e os amigos, também. Mergulhado na autoilusão, debitava todas as culpas neles, nunca em mim. Apesar desses tropeços, fui progredindo em termos profissionais e econômicos. Logo, não tinha mais tempo para reuniões de A.A. Nem precisava: já tinha as ferramentas para tocar a vida por conta própria.
Caminhando em isolamento enfrentei depressões, medos, hérnias de disco, culpas, hemorróidas e ressentimentos. Depois de 15 anos de abstinência, achei que podia enfrentar também uma taça de vinho. Recaí e fiquei bebendo durante cinco anos, até que o sofrimento ficou insuportável e, aos 56 anos, cabisbaixo, retornei para A.A. Novamente, parei de beber. Novamente, voltei a pensar e a falar nos Passos e Tradições. Novamente, passei a prestar serviço. Novamente, eu aparentava ser um novo homem. Novamente, estava iludido, achando que dessa vez o programa iria funcionar.
Mas, novamente, o programa não funcionou. Mais uma vez, a vida real sem álcool ficou difícil. Um dia, prejudiquei um companheiro recaído – que reagiu agressivamente e afastou-se do grupo. Senti-me mal. Contei o caso para alguns veteranos, eles tentaram aliviar-me, dizendo que eu agira com boas intenções, mas eu sabia que agira movido pela minha vaidade e sob efeito de uma substância que estava usando.
Fiquei uns dias sem dormir direito, sem fazer barba nem tomar banho. Uma manhã, olhei-me no espelho e vi um homem envelhecido, sujo, cujos olhos vermelhos diziam-me: eu sou você, é assim que você é.
Esse era o homem no qual eu me transformara. Passei a vida tentando escondê-lo de mim mesmo, mas agora eu estava realmente derrotado. Pela primeira vez, queria remover meus defeitos, queria viver em total honestidade comigo mesmo e com os outros.
Dias depois, numa reunião de literatura, alguém leu o capítulo 5 (“Como Funciona”) do livro Alcoólicos Anônimos. Foi uma revelação para mim. Depois de 20 anos, entendi como o programa de A.A. funciona – e porque não funcionava comigo. Comecei a evitar as mentiras. Confessei perante o grupo que nunca tinha feito honestamente o programa de recuperação. Assumi que era dependente de outra droga além do álcool, que eu afastara do grupo aquele companheiro recaído, que eu não passava de um adolescente egoísta, interesseiro, vaidoso e mentiroso; que nunca tinha sido honesto comigo mesmo, nem com os outros.
Tive medo de ser rejeitado. Mas a reação dos companheiros foi inversa: abraçaram-me. Algum tempo depois, encontrei o companheiro que se afastara do grupo. Admitimos nossos erros, abraçamo-nos emocionados e pedimos desculpas um ao outro. As coisas pareciam estar funcionando.
Aos poucos, passei a perceber minhas falhas logo depois de cometê-las; depois, já enquanto as cometia. Hoje, consigo identificar alguns erros antes de praticá-los, mas, às vezes, ainda me escapa algo. Procuro reparar de imediato, caso contrário o homem do espelho olhar-me-á com reprovação no dia seguinte e não quero mais desapontá-lo, pois somos parças agora, gostamos um do outro. Anônimo, SP