Desde que me entendo por gente sinto solidão, medo e culpa. Minhas primeiras memórias são envoltas em apreensão e vergonha. Cresci num lar alcoólico muito disfuncional onde a confusão, incerteza e falta de parâmetros reinavam. Meus pais, eles mesmos crianças muito feridas estavam a bater cabeça com a vida, eram bastante despreparados para a tarefa de cuidar de duas crianças, eu e minha irmã. Tudo era instável, mudávamos de casa constantemente, meu pai sempre partindo e voltando entre brigas violentas e reconciliações fulminantes. Tudo sem filtro: os gritos, os objetos voando, tudo era susto. Não havia ritmo, não havia calma, não havia conforto, não havia a atenção necessária, não havia nada que tornasse a vida uma experiência tranquila, acolhedora e confiável para uma criança possa desenvolver seu ser em paz. A falta de limites era total, brincávamos livres e muitas vezes em situação de abandono, assim, tínhamos de nos virar e descobrir sozinhas o que era bom e ruim, tendo de dar conta de coisas das quais não estávamos preparadas. Nem preciso dizer que desenvolvi uma autossuficiência logo cedo, pois sentia que precisava resolver tudo sozinha, e uma série de mecanismos de defesa distorcidos. Para me sentir importante e amada, encontrei um papel dentro do sistema familiar que era da estrela, da virtuosa, da que falava coisas engraçadas, descontraia em momentos tensos, afinal, nada era tão sério. Virei também a bonequinha do papai e confidente da mãe. Encobri meu medo, insegurança, auto estima baixa e solidão com controle e manipulação, construindo uma personagem intelectual, artista, desenvolta, poderosa e usei todas as habilidade que eu realmente tinha de forma distorcida para proteger toda minha fragilidade. Fiquei raivosa e agtressiva.
Cresci rápido, minha infância foi encurtada e aos 11 anos comecei a cheirar benzina no quintal e foi minha primeira experiência de evasão da realidade. Já sentia uma autopiedade, inveja das outras crianças e vontade de ser outra pessoa em outra vida, e este foi um sentimento que me acompanhou por longos anos. Passei a fumar e a possibilidade de ter substâncias que me ajudasse a afirmar minha personagem e a me levar para longe de tudo que eu sentia e vivia me atraíam muito. Tinha uma carência espiritual profunda, sentia melancolia constantemente e o sentido das coisas já me escapava.
Aos 13 anos encontrei o álcool. Foi fantástico. Me dava potência, alegria, me tornava invencível, eu podia tudo! Acompanhada do álcool e do meu infalível maço de Malboro me lancei no mundo, podia misturar pinga com soda limonada num copo americano, tampar o copo, bater no joelho e mandar de uma vez para dentro. Pronto: tudo estava resolvido!
Passei a beber diariamente e a frequentar todo tipo de submundo .Meu primeiro apagão veio aos 14 anos. Fui a um bar de Heavy Metal no Jabaquara, bebi várias doses de um drinque que misturava todas as bebidas destiladas, e minha última lembrança foi de enfiar a mão no vômito dentro da privada para pegar minha carteira que havia caído dentro. Acordei no dia seguinte pelada, com os cabelos molhados, deitada num colchão no chão de um lugar que eu não sabia qual era. Estava doída e machucada. Havia perdido minha virgindade nesta noite, com um homem de 35 anos,casado, que por muitos anos contei a mim mesma que ele tinha sido amável e generoso cuidado de mim.
Desta vez desconfiei que algo talvez estivesse meio errado, mais pela reação da minha mãe, que já estava desesperada na polícia do que por outra coisa.
Passei a me conter um pouco nas minhas noitadas, arrumei um namorado fixo e a me compenetrar na escola, pois havia repetido a sétima série por falta.
Criei uma certa adaptabilidade, mas continuei bebendo, fumando e passei a usar outras drogas como a maconha e por vezes a cocaína. Me interessei pela escola no ensino médio pois era uma forma de eu desenvolver minhas habilidades intelectuais e artísticas, habilidades estas que muniam minha auto suficiência e prepotência.
Entrei na faculdade de música que meu pai queria, e no quarto para o quinto ano algo começou a girar torto. Certa noite acordei com taquicardia, suando frio e tive um único pensamento: estou morrendo. Saí desesperada correndo pelas ruas, as 3 da manhã, descalça, de pijama, e alguns quarteirões depois, cheguei a casa da minha mãe surrando a porta. Quando ela abriu eu só pude dizer: estou morrendo! Este foi meu primeiro ataque de pânico. Eles se repetiram por 2 anos, diariamente.
Adoeci severamente, abandonei a faculdade pois não conseguia mais sair de casa nem fazer mais nada. Entrei em abstinência do álcool e de todas as drogas pois estava trancada na casa da minha mãe e lutava com o medo da morte diariamente. Foi meu primeiro colapso. O medo, escalonado ao pânico, escondido por anos tomou território pelo meu corpo e implodiu a personagem que eu havia construído. Não sabia mais quem eu era, sentia um fracasso monumental e muita culpa. Derrota completa. Fiquei em tratamento com terapia e acupuntura, minha mãe se colocou contra o uso de medicamentos e entrei em uma abstinência bruta. Após um ano, por orientação da minha terapeuta, fui procurar uma ginástica, e ao entrar nesta escola que era o mais próximo da minha casa, vi uma senhora dançando e fui capturada por esta linda imagem. Iniciei esta aula de dança e lá, milagre! O pânico sumia. Foi meu primeiro despertar espiritual. Hoje sei que ali sentia a presença de um Poder Superior mesmo que eu não soubesse nomear.Passava o dia inteiro nesta escola e fazia todas as aulas de dança disponíveis, enquanto eu estava dançando eu estava em paz.
Aos 24 anos ingressei em uma faculdade integral de dança e dançava 8 horas por dia. Eu estava curada, pensei. Entrei em abstinência, mas não em recuperação . Passei a reconstruir minha personagem, voltei à autossuficiência e fui batendo cabeça . Tive relacionamentos tóxicos, vieram os filhos e tudo que escolhi deu errado. Já separada do meu segundo casamento, muito infeliz, voltei a beber, na minha cabeça moderadamente. Eu podia e “merecia”. Sozinha a um ano e meio, conheci meu companheiro alcoólatra já na fase terminal da doença. Foi então que percebi que algo estava realmente errado comigo. Após tudo que tinha vivido, estava com minha vida totalmente fora de controle, estava desesperada. Anos de terapia, achava que já tinha entendido umas tantas coisas, e continuava apavorada, sozinha, raivosa e numa relação tóxica. Não achava nada de mal em tomar uma garrafa de vinho no final do dia . Voltei a ter pânico. Achando que podia salvar meu companheiro que estava na beira da loucura, comecei a procurar alternativas. Olhar para ele me poupava de olhar para mim e intensificava minha onipotência. Finalmente um livro dos doze passos chegou as minhas mãos. Ali de novo pressenti um caminho para luz, tinha algo novo para mim: a parceria com um Poder Superior. Estava tão cansada e derrotada que senti um enorme alívio ao perceber que podia me render e me entregar aos cuidados de um Deus. Aquela noção veio ao meu encontro como se fosse algo que tivesse procurado toda a minha vida, desde criança, a única coisa capaz de interromper minha solidão, como se fosse algo que já soubesse, e tivesse esquecido, algo conhecido que fosse Re-conhecido.
A partir daí se iniciou uma jornada em direção à recuperação. Conheci primeiro o al Anon, e lá entendi o alcoolismo na minha família , que tudo que achava normal estava fora do lugar e quantas mentiras havia contado a mim mesma. Era como se um holofote fosse ligado dentro de mim e agora eu pudesse ver todos os cantos. E neste processo, nesta peregrinação de recuperação, como minha madrinha nomeou certa vez, a última mentira e a mais dura de admitir, que contei até recentemente pôde cair: a de que eu não era alcoólica, nem adicta. As justificações para continuar bebendo foram cessando devagar, pude pela graça de Deus, parar de negar, antecipar mais um fundo de poço e estar inteira em aceitação de todas as minhas partes, mesmo as mais terríveis e vergonhosas. TEnho sentido uma sensação de liberdade que nunca havia experimentado. A idéia de ser uma doente alcoólica e adicta e de ser a doença incurável vem podendo ser aceita na medida que diminui minha auto suficiência. Ao ingressar em AA vi que milhares de homens e mulheres reconhecem o que sinto, e se juntam em amor, em irmandade para se ajudar mutuamente a se recuperarem. Percebi que Deus como o concebo sempre esteve ali com sua mão invisível mostrando o caminho, e isto fez toda a diferença. Hoje, eu não estou mais sozinha.